STF muda jurisprudência, reforça caixa da União e eleva carga tributária na pandemia
Mudanças de entendimentos anteriormente consolidados no Supremo Tribunal Federal em casos de natureza tributária reforçaram o caixa da União no período da pandemia em, ao menos, R$ 225 bilhões, aponta estimativa feita por tributaristas.
O valor equivale a um aumento de 15% no pagamento de tributos, elevação ocorrida a partir de nove decisões de repercussão geral em que o Supremo mudou a jurisprudência ou os fundamentos que embasaram discussões similares no passado.
Somando todos os casos em que a Fazenda saiu vitoriosa, incluindo as ações em que o STF não mudou de posição, os contribuintes foram onerados em mais R$ 338 bilhões. Juntos, esses casos geraram aumento de impostos de R$ 563 bilhões, o que representa praticamente um terço da arrecadação federal.
Esses casos foram julgados entre meados de março de 2020, quando os efeitos da pandemia do coronavírus se mostraram mais danosos à economia devido ao isolamento social, e o início de março deste ano.
Nesse período, o STF deu prioridade a casos referentes à pandemia e passou a usar de forma mais consistente o plenário virtual, uma plataforma digital em que os ministros depositam seus votos.
Levantamento feito pela Folha mostra que, no ano da pandemia, foram julgados 52 casos tributários de repercussão (quando a decisão afeta processos de primeira e segunda instâncias). Desse total, 37 (71%) foram favoráveis ao fisco e às Fazendas estaduais e municipais. Dentre eles, nove sofreram reversão de entendimento pela corte.
Houve reversão na discussão sobre a incidência de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) sobre importados, o pagamento pelas empresas do terço constitucional de férias, a imunidade da contribuição previdenciária de inativos militares e a cobrança de ICMS (tributo estadual) na venda de veículos seminovos pertencentes a locadoras, entre outros.
Essa inflexão gerou questionamentos entre advogados tributaristas. Para eles, ainda que sem intenção, o STF estaria ajudando o governo a fazer caixa durante a crise, que consumiu R$ 524 bilhões do Orçamento no ano passado, elevando o endividamento público a um patamar próximo a 100% do PIB (Produto Interno Bruto).
O ministro da Economia, Paulo Guedes, vinha resistindo a um aumento de impostos como forma de gerar recursos para bancar a nova rodada do auxílio emergencial e de outros programas defendidos por integrantes do governo, como o Bolsa Família.
Em maio do ano passado, locadoras de veículos, que não recolhiam ICMS na venda de veículos seminovos de sua frota, passaram a ter de arcar com esse imposto nas operações fechadas antes de doze meses após a compra do carro.
Esse negócio representa uma fatia importante do faturamento das três maiores locadoras (Localiza, Unidas e Movida). Em 2019, por exemplo, chegaram a faturar mais com a revenda de usados do que com a locação.
Com a decisão do Supremo, o governo de São Paulo ganhou o direito de receber uma cobrança de 18% de ICMS sobre a venda de 48 mil automóveis seminovos entre 2018 e 2020. O valor é de cerca de R$ 360 milhões.
Segundo a Secretaria de Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo, nesse período, as locadoras faturaram mais de R$ 2 bilhões com esse tipo de negócio.
Em agosto, contrariando decisões em que sinalizava pela extinção da multa adicional de 10% sobre o saldo do FGTS na demissão de funcionário sem justa causa, a corte validou a cobrança —que vigorou de 2001 a 2019 e ia para o caixa da União—, que gera ao menos R$ 36 bilhões a mais para o empregador.
Também em agosto, contrariando posicionamento anterior de que não tinha competência para julgar a obrigatoriedade do pagamento do terço de férias para funcionários da iniciativa privada, o STF voltou atrás e julgou o caso favorável aos trabalhadores. A conta para os empregadores, que arcarão com esse gasto, será de R$ 28 bilhões.
Em setembro, o plenário alterou posicionamento anterior e incluiu entidades como Sebrae, Apex e Abdi na lista de atividades “taxativas”, algo que impôs às empresas ligadas ao chamado Sistema S o recolhimento de 0,6% sobre a folha para financiar as atividades dessas instituições, algo em torno de R$ 24 bilhões.
Em outras 28 decisões, o STF deu ganho de causa à Fazenda acompanhando sua jurisprudência.
Recentemente, o coordenador da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional no STF, Paulo Mendes, afirmou que houve um aumento de casos tributários nos últimos doze meses devido ao uso do plenário virtual.
Segundo ele, muitos casos tributários até chegaram a ser pautados no plenário presencial, mas acabavam não sendo julgados por falta de tempo nas sessões. Com o virtual, esse problema foi resolvido.
Para o advogado Daniel Szelbracikowski, sócio da Advocacia Dias de Sousa, o plenário virtual ajuda a explicar a sobrecarga tributária do contribuinte.
“Nessa plataforma nem sempre há debate profundo sobre as teses como no plenário por videoconferência. Funciona como uma justaposição de votos”, disse. “Pode até ser que, dessa forma, os ministros tenham mudado a jurisprudência, ainda que parcialmente, sem perceber. Isso cria um problema para o futuro, caso tenham de decidir algo semelhante.”
O tributarista Paulo Tedesco, sócio do Mattos Filho, também culpa o plenário virtual. “Ele reduziu a fila de casos tributários, mas é preciso recalibrá-lo”, disse.
Para Tedesco, é prematuro afirmar que houve um direcionamento do STF nas decisões para ajudar o governo a reforçar o caixa na pandemia.
“Essa tendência pode ser notada [com mais clareza] nas modulações, sempre mais favoráveis à Fazenda, mesmo nos casos em que o contribuinte obteve vitória.” A modulação é uma espécie de calibragem da decisão..
Para Tiago Conde Teixeira, sócio do escritório Sacha Calmon Misabel Derzi, especializado em causas tributárias, “casos graves de alterações de jurisprudências consolidadas” causaram um impacto “avassalador”.
“Mudar de opinião é parte do jogo democrático, mas em garantia ao princípio da segurança jurídica, o STF deve respeitar o contribuinte que confiou em orientações jurisprudenciais e com isso planejou o seu negócio.”
Para ele, a saída a partir de agora seria uma modulação das decisões, uma espécie de perdão do passado e a aplicação das novas regras a partir de agora.
STF DIZ QUE JULGOU MAIS COM USO DO PLENÁRIO VIRTUAL
O STF afirmou que o aumento dos casos tributários julgados se deve à ampliação do plenário virtual durante a pandemia.
Por meio de sua assessoria, a corte afirma que, até 2019, a média de julgamentos era de 33 processos por ano. Em 2020, o STF julgou 135 processos. Em 2021, esse número já chegou a 14.
Sobre a mudança de entendimento dos casos mencionados pela reportagem, a corte disse que, no caso das franquias, já tinha ampliado o conceito de serviço quando discutiu a situação dos planos de saúde.
Na decisão sobre incidência de ICMS sobre bens importados, afirma que havia Lei Complementar e que apenas reconheceu cobranças posteriores a ela.
Em relação ao ICMS na venda de seminovos de locadoras, o tribunal avaliou que não poderia “fechar os olhos à realidade”. Para o STF, as locadoras tornaram-se grandes vendedoras de automóvel e, por isso, a corte reconheceu a regra de o veículo precisa ficar 12 meses no ativo da empresa para ser caracterizado como imobilizado “sem oneração tributária”.
O tribunal negou ter sinalizado que não há mais motivos para a cobrança da multa de 10% sobre FGTS em demissões sem justa causa. O “exaurimento das finalidades não era matéria que maculasse a contribuição.”